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Caro (a) leitor (a), presumo que, estando a ler estas palavras, já leu o título. Permita-me que presuma também que não me imaginou fisicamente na lua (satélite) ou uma tromba de elefante a sair da cara de um qualquer amigo meu. Contudo, foi exatamente essa imagem mental que criei numa criança ou jovem com deficiência auditiva (DA) que tenha lido o título. Da mesma forma, e ultrapassando a ocorrência de recursos estilísticos no quotidiano coloquial, quando nos textos de Língua Portuguesa começam a surgir metáforas como ‘O rapaz era um leão’, estas crianças e jovens vão atribuir uma interpretação literal à frase, não conseguindo efetuar a comparação implícita e atribuir as características de coragem e robustez do leão ao rapaz. Vejamos então o que está na base destas ocorrências.

A deficiência auditiva (DA) é, à luz do modelo médico, uma doença sensorial [1] que resulta de uma privação, total ou parcial, da receção dos estímulos auditivos, sendo caracterizada em termos da localização da lesão, do grau de severidade, da configuração [2, 3] e do momento em que tem início [4]. A DA é o défice sensorial mais frequente na população humana, afetando 10% da população mundial e 0,8% da população nacional [5]. Em Portugal, as crianças com NEE de carácter permanente representam cerca de 5% do total da população escolar, sendo que destas, 3% possuem DA. Dada a representatividade desta população, importa aprofundar o conhecimento acerca dos seus processos mentais, de modo a promover o desenvolvimento de competências, a funcionalidade e a sua inclusão numa sociedade maioritariamente ouvinte e oralista. Neste sentido, considera-se, neste artigo, a importância do sentido figurado (figuras de estilo), em geral, e da metáfora, em particular.
Atualmente, o facto de as metáforas não pertencerem exclusivamente ao campo linguístico mas constituírem, em vez disso, fenómenos mentais subjacentes quer à linguagem quotidiana, quer à linguagem literária, já é uma asserção basilar da Linguística Cognitiva [6]. A metáfora constitui-se, assim, como uma ferramenta cognitiva essencial de organização mental, estando subjacente ao pensamento e à ação [7]. Estima-se que, em média, em cada cem palavras, cinco são metáforas [7] e vários estudos reportam a sua frequência quotidiana [8-10], sendo que muitas delas estão tão banalmente incorporadas no modo como conceptualizamos e falamos do mundo no nosso dia-a-dia, que nem nos apercebemos que não podem ser interpretadas de forma literal. Importa enfatizar que o sistema conceptual não se limita a um estatuto intelectual, desempenhando um papel fulcral na definição das realidades quotidianas, uma vez que direciona a forma como vemos e interagimos com o mundo e as pessoas. Vários estudos apontam para os benefícios e para a importância da metáfora na compreensão geral do discurso [11]; no raciocínio de conceitos abstratos [7]; na aprendizagem, interpretação e compreensão, quer de linguagem convencional, quer inovadora [12]; na conceptualização das emoções [13]; na verbalização de conceitos e condensação semântica [14]; e na estruturação e compreensão de linguagens técnico-científicas [15]. Além destes, é atribuído ao processo metafórico um efeito facilitador no desenvolvimento de competências de compreensão de leitura [11] através da promoção da memorização, da capacidade de destacar informação relevante e de apreender o conteúdo geral do texto [16]. Ao conceptualizar uma coisa, mais abstrata, em termos de outra, mais experiencial e imagética, a metáfora constitui uma forma de condensação de informação, de economia cognitiva e facilita a retenção da informação na memória a longo prazo [16], sendo por isso defendida por alguns pedagogos como uma importante ferramenta didática [17]. Apesar da natureza cognitiva da metáfora, esta materializa-se e atualiza-se em expressões linguísticas mais ou menos convencionais, sendo a linguagem uma importante ferramenta de mediação e interação entre as nossas conceptualizações e o mundo. Desta forma, pode inferir-se que a linguagem, sistema complexo, organizado e dinâmico de símbolos convencionais (sons, palavras e sinais) que permite ao Homem comunicar e pensar [18], cujo desenvolvimento é determinado pela interação entre fatores biológicos, cognitivos, psicossociais e ambientais [18, 19], influencia a compreensão metafórica. Por outro lado, ainda que se observe uma ampla variabilidade individual nas crianças com DA [20, 21], por norma, apresentam um atraso de desenvolvimento da linguagem, quer quantitativo quer qualitativo, aos níveis da compreensão e da expressão [22-26].
Pelo já descrito até aqui, compreende-se que a incapacidade ou dificuldade de compreensão de expressões metafóricas pode acarretar barreiras comunicacionais e educacionais. Contudo, apesar das múltiplas evidências da importância do processo metafórico, a investigação da sua compreensão por crianças com DA, além de escassa, não é consensual. Enquanto há estudos que reportam que a compreensão metafórica se encontra alterada [27-29], existindo uma correlação negativa entre essas duas variáveis, ou seja, quanto maior o grau de DA, menor o desempenho em tarefas metafóricas; outros constatam que a compreensão de metáforas se enquadra na normalidade, desde que a tendência destas crianças para efetuar uma interpretação literal seja previamente neutralizada em sessões práticas através de tarefas de treino e de feedback do desempenho [30]. As capacidades linguísticas semânticas e sintáticas demonstram exercer uma influência positiva na compreensão metafórica, sendo que crianças com DA de grau profundo apresentam capacidade de compreensão metafórica quando têm um domínio relevante de tais competências [31].
Sendo a revisão da literatura consensual quanto à importância da metáfora enquanto ferramenta cognitiva, comunicacional, educacional e social, importa dotar as crianças e jovens com DA de ferramentas e estratégias que possibilitem a sua análise e compreensão. Estas estratégias podem passar pela demonstração da metáfora num plano visual (via normalmente mais desenvolvida nesta população) através de imagens, de esquemas ou da realização de diagramas de interseção.
Apesar de este artigo se ter centrado na metáfora, o seu conteúdo é extrapolável à interpretação de outros recursos estilísticos (e.g. personificação, hipérbole) uma vez que os processos mentais envolvidos são, grosso modo, os mesmos. Posto isto, não estranhe que depois de dizer a um criança com DA “Fulano morreu a rir”, ela fique com uma expressão facial de pânico, pois achará que de facto a pessoa em causa morreu com um ataque de riso; ou que depois de lhe dizer “O fogo dançava com chuva”, ela ache que você está maluquinho (a) porque o fogo não dança e a chuva tão pouco. É da responsabilidade de todos nós ajudarmos estas crianças a ultrapassar tais barreiras, de forma a contribuir, efetiva e eficazmente, para a sua inclusão na sociedade.

Bibliografia
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