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Bragança, 9 de maio de 2020

 Há já alguns anos que o mundo parou. Assim o percebo, o tempo, esse elástico personagem que contrai e estica indefinidamente na cabeça de cada um. Há também alguns anos que o mundo é feito de vidro, se bem que a barreira é facilmente ultrapassável pela simples vontade de respirar um ar menos abafado.

Hoje, vias de fuga à depressão e à apatia existem ao acesso de qualquer um. Leio umas páginas do “The Handmaid’s Tale”, caço e caso peças daquele puzzle, que enquanto não estiver terminado me vai martelando a memória, faço pela enésima vez o cubo ou o dodecaedro ou a pirâmide, com as respetivas faces coloridas. Não é fácil ser prisioneiro, mas talvez seja pior ser guarda. Depois do almoço não faço grande coisa, senão escrever em letras ou em símbolos de equações. Li uma quantidade absurda de livros durante isto: assisti à morte de Moby Dick, após um ano com duas interrupções, invejei a sorte e a liberdade de Tom e Huck e maravilhei-me com a dedução de Sherlock. Ainda espaireci um pouco, violei a lei sem vergonha alguma, a pé ou de bicicleta, mas a rotina exagerada leva à loucura e à atrofia, muscular e cerebral. Quero voltar a tocar, a abraçar, a viver.


Bragança, 10 de maio de 2020

Já me tinha apercebido anteriormente da perpétua rotineira dos meus dias. Se alguma vez a escrita diarística me entusiasmar, haverá muitas entradas em que estará escrito “Ver dia anterior”. Como sempre, levanto-me, leio ou limpo qualquer coisa, almoço, trabalho, lancho, trabalho, janto, uma hora de ócio, durmo. É incrível como a vida de estudante não difere da de trabalhador público ou privado. Pergunto-me se será treino, formatação da nova geração para a repetição contínua até à morte ou a velhice, tal e qual soldados que marcham para um bem maior, um bem coletivo, a vitória da sociedade, da máquina de formatação. O Homem é anarquista primordial, nómada, coletor, trocou foi a liberdade pela segurança, fugiu aos instintos e fechou-se.

A vida passa por detrás destas cortinas, há quem trabalhe dentro doutras, há quem trabalhe fora. Duvido que haja quem não trabalhe, senão aqueles que o tempo devorou. É fim de semana e o mundo está a morrer. Ainda assim preocupamo-nos com o amanhã, com preparar a segunda que nos espera. Nunca paramos para refletir, para pensar demais, para enfrentar a verdade da vida e da morte. Não tiramos um momento para filosofar nem para a revolta. É isso que está mal no mundo.

 

 

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