O Centro de Arte Contemporânea Graça Morais (CACGM) abriu portas à Literatura numa iniciativa que trouxe a Bragança, no dia 18 de fevereiro, Valter Hugo Mãe, para a apresentação do seu mais recente romance "Desumanizacao". Rodeado pelos quadros de Graça Morais, a pintora que admira e que confessou querer conhecer pessoalmente, mas que teima em “escapar-lhe” em todas as situações em que esse encontro parece prestes a acontecer, como aconteceu desta vez, em que, ao contrário do previsto, não pôde estar presente, o escritor ouviu falar dos seus livros, partilhou perspectivas e episódios da sua existência e defendeu as suas criações.
As palavras de Graça Morais, transmitindo o seu lamento por não poder comparecer à apresentação do livro que descreve como simultaneamente violento e belo, surgiram na voz de Jorge Costa, director deste espaço cultural brigantino,. Foram ainda as palavras de outro grande vulto da literatura portuguesa, José Saramago, que Jorge Costa usou para apresentar o escritor, vencedor do Prémio José Saramago pela sua obra “os remorsos de baltazar serapião”:” Este livro é um tsunami, não no sentido destrutivo, mas no da força. Foi a primeira imagem que me veio à cabeça. Este livro é uma revolução. Tem de ser lido, porque traz muito de novo e fertilizará a literatura. Por vezes tive a sensação de assistir a um novo parto da língua portuguesa”.
Para o escritor, a vinda a Bragança revestiu-se de um significado especial. Aos amigos que tem na região, alia-se o facto de a acção de “O apocalipse dos trabalhadores”, decorrer na capital transmontana: “Na altura fiquei com a ideia de que Bragança era muito cosmopolita. Os brigantinos convivem muito bem com os espanhóis. Usei Bragança porque parece suscitar um reduto de portugalidade. O resto do país tem folia de mudança. A mistura com Espanha é uma forma de ser e contribui para a portugalidade”. O motivo dessa satisfação deveu-se, ainda, ao facto de a apresentação decorrer num espaço ligado a uma pintora que admira muito, “Ela, ao invés de cristalizar e de se tornar uma mestre repetida, tem tido a capacidade para melhorar”. Surpreendente, para o escritor, foi a presença de um bispo, que leu o seu livro: “os bispos são um espécie de estrelas inatingíveis. Se um dia tiver de gostar de algum bispo gostarei deste”, brincou o escritor.
E foi num tom informal e bem humorado que decorreu toda a sessão que a pretexto da obra Desumanização abordou a actividade de escrita, “a fantasia que ajuda a pensar acerca da realidade. Ajuda a perceber o que é ou não plausível, até que ponto a arte nos pode salvar”. Por isso, cada livro é uma entrega absoluta que nem sempre é isenta de dor: “às vezes fica-se completamente escangalhado. Depois de A máquina de fazer espanhóis tive necessidade de escrever um livro mais positivo. Estava destroçado. Surgiu, então o filho de mil homens.
A acção do último livro decorre na Islândia, onde o escritor esteve antes de o escrever, e confirmou que esse espaço tinha aquilo que era essencial à sua história: a espiritualidade, uma espécie de comunhão mística com o homem. E essa certeza veio poucos dias depois de lá chegar. Passada a fase do embasbacamento de turista, o espaço absorveu-o: “num lugar onde estava só, tive a sensação de estar a ser visto. Anotei a primeira frase: A Islândia pensa.” Depois veio a certeza de que ali a solidão é só aparente. Os elementos naturais são espiritualizados. Desumanização mostra essa ligação entre as gentes e o espaço. O romance é uma tentativa de criar a voz de uma menina de doze anos que conta o que acontece à sua vida, o que sente a partir do momento em que a sua irmã gémea morre.
Por isso, para José Cordeiro, bispo de Bragança, é “um livro de uma enorme humanidade. Eles têm a percepção de que são contemplados pelas imagens. É Deus que os contempla a eles e não o contrário, porque a visão dos homens é limitada. A frase com que encerra o livro é paradigmática: quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas". Considera que também O filho de mil homens tem uma dimensão humana enorme: ”toca os problemas fundamentais do homem. Deus ou tem um rosto humano ou o que se diz sobre ele é tudo mentira. Por isso, esse livro é um contributo fundamental pelo diálogo que promove hoje. Muitas pessoas estão perdidas e é preciso que elas se deixem olhar por Deus, que se deixem iluminar por essa luz. São precisas pessoas que sejam capazes com a sua qualidade do dizer de os aproximar. Um dia José Rodrigues perguntou-me o que era a fé e eu perguntei-lhe o que era para ele a arte. Ele respondeu que era uma forma de dizer deus. Estava bom caminho, respondi-lhe, então, eu.”
Para Valter Hugo Mãe, mais importante do que acreditar na transcendência, é acreditar nos outros.” A humanidade começa no outro. É o outro que nos faz gente”. Por isso o mérito é tão importante para ele “pensar, ser inteligente, permite amar, conceber arte” A transcendência só se coloca depois de a merecermos”.
Essa consciência de que o outro é fundamental na construção de cada um está presente também em “o remorso de baltazar serapião”. “É a profunda ligação do protagonista à mãe e às irmãs que fez com que agredisse tudo aquilo que as agredia. Almada Negreiros dizia que os animais deviam ter o apelido da família que os acolhe. Eu inverti o processo. Inventei a vaca e fiz o contrário: é ela que dá o nome à família. Esta obra é uma forma de mostrar a infelicidade da mulher ao longo da história. Ela foi bestializada ao longo da história. O remorso dele é inquinado, horroroso. Ele é terrível com as mulheres. Foi a forma que encontrei de mostrar esta violência. A idade média é a idade mental daquele livro. Por isso inventei uma linguagem que parecia antiga, aquilo que Saramago designou como um novo parto da língua portuguesa. Posso dizer que não me custou, ela surgiu, naturalmente, porque pertencia àquela história. Confesso que me assustou. Colou-se a mim durante algum tempo. Demorou quase um ano a soltar-se. Quando o livro saiu, pasmei. Isto dos livros é incrível. Os livros devolvem-nos uma versão de nós. Escrever é o melhor que eu posso fazer. Para mim é um espanto escrever.”