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Tudo começara numa tarde serena. Mais outra tarde de leitura de um jornal banal recheado de notícias banais que eu já tinha lido em inúmeros outros jornais. Estava sentado no habitual banco plantado à sombra de uma árvore de braços longos. A relva estava como sempre a tinha conhecido, por cortar, e, de vez em quando, pequenos pássaros pousavam no banco onde me sentava. Desviei o olhar do jornal para apreciar a beleza durante momentos e, pelo canto do olho vi uma figura inacreditável. Cor de tijolo e riscado de preto, patas grossas e olhar felino. Tinha visto suficientes documentários para saber que se tratava de um tigre.

Admito a cobardia, mas acho natural que a sensação de fascínio tenha durado pouco, tendo sido substituída pelo medo. O meu coração palpitava cada vez mais rápido e a minha respiração tentava acompanhar. Podia ter gritado, mas não o fiz. Ainda bem, pois certamente ter-me-iam chamado maluco. Aquele ser majestoso que estava completamente à vista parecia passar despercebido a todos, menos a mim. As crianças continuavam a brincar, as velhinhas ainda tricotavam, e o polícia e o barbeiro tagarelavam. Estava estupefacto.
O animal aproximou-se de mim. Com o seu andar vagaroso, aproximou-se tanto de mim que consegui sentir o calor do seu hálito. Não me atrevi a mexer-me nem a olhá-lo nos olhos. Após uns quarenta e cinco minutos desta antecipação aterrorizante, em que não houve qualquer movimento, levantei-me. Com a adrenalina, comecei a andar sem olhar para trás. Passados três quarteirões, olhei finalmente para trás e o bicho estava lá, mesmo atrás de mim, monstruoso, mas silencioso como uma pena.
Acontece que nesse preciso momento me encontrava à porta de uma livraria. Num livro da montra, lia-se o título "olho de tigre" e, nas profundezas da loja, a subir umas escadas em caracol, viam-se uns sapatinhos de padrão tigre. Entrei na loja. Não sei bem porquê, pareceu-me o mais acertado a fazer. Olhando para trás, penso que terá sido o destino.
Ao entrar na loja, uma voz fina disse:
- Boa tarde – num tom interrogativo. Ao qual eu respondi, hesitante:
- Boa tarde...
Uma pequena figura ruiva apareceu do andar de cima e imediatamente reparo no seu olhar; era como o de um felino.
E continuei:
- Pergunto-me se me sabe dizer se um homem que vê o que mais ninguém vê é um homem louco, imaginativo ou sortudo.
- Isso depende não só do homem, mas também daquilo que ele vê.
- Se, hipoteticamente, um homem vê um animal, um tigre, por exemplo. Um tigre com corpo e presença, mas visível para apenas um homem.
- Então, provavelmente, o homem seria louco... Ou então não... Quando é que o tigre lhe apareceu pela primeira vez?
Ela sabia. Era perspicaz. Ponderei comprar um livro, talvez o da montra, e ir-me embora só pelo ridículo da situação, mas fiquei e contei-lhe a história. Toda desde o início. Desde o futebol da primeira página do jornal que estava a ler até ao livro da montra. Ela ficou pensativa e calma e, após alguns segundos, anunciou que ia buscar um livro.
O tempo que esteve fora serviu-me para apreciar o pequeno espaço. Cheirava a livros novos e a livros velhos simultaneamente. Cheiro este que consumia a sala repleta dos mais variados livros. Vinda de uma janela lá no fundo, uma luz branca e pálida pairava, deixando visível a espessa camada de pó nas paredes e no chão.
A rapariga voltou das profundezas da loja carregada do que dizia serem "todos os livros minimamente relevantes" para o diagnóstico do meu problema. Excluímos a hipótese da loucura apesar de parecer a mais acertada.
Enquanto investigávamos, o animal dormia, num canto, com um olho meio-aberto.
Por momentos, considerámos que podia ser uma aparição divina, mas a minha comunicação com o animal era limitada.
Quanto mais investigava, mais absurda a situação se revelava. Propus fazermos uma pausa e a rapariga disse séria:
- Ou continuamos, para sempre, em busca de uma resposta que não existe, ou paramos, para sempre, à procura da verdade, já que esta é, sem dúvida, sobrevalorizada.
Ouvi atentamente este curto discurso e cheguei à conclusão que, na verdade, a razão pela qual as coisas acontecem pouco interessava.
Como não tinha acabado de ler o jornal, peguei no que estava em cima do balcão, olhei para a rapariga, que permanecia calada, uma última vez e agradeci a sua ajuda. Finalmente, abandonei o estabelecimento. Continuei a andar pelo caminho inverso ao previamente percorrido e, quando olhei para trás, o tigre já lá não estava e no lugar da livraria estava uma mercearia. Pousada no balcão, estava uma bonequinha com cabelos ruivos. Porém o jornal continuava na minha mão.
Não me questionei sobre o que se passara, não senti essa necessidade. Ao chegar ao banco do jardim, sentei-me, abri o jornal e retomei a leitura.

 

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