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Duas... Três... Quatro... Cinco…
- Doutor Stuart, a Senhora Dolores da Madeira chegou. Mando-a entrar?
- Sim, Helena. Já agora, cancela os meus compromissos para logo à noite.
- Como queira, Doutor.

E era assim, a monótona vida de um editor de livros. Stuart trabalhava na Lua de Cartolina, editora de renome internacional. Já se convencera da realidade em que vivia; os livros eram um produto, simples marketing. Publicar obras com qualidade não era um objetivo da editora; publicar obras que rendessem e dessem lucro imediato era a finalidade deste negócio. No que se refere à obtenção de relatos sobre a infância trágica de crianças que hoje são famosas… a Lua de Cartolina lançava a melhor proposta, conseguindo sempre os direitos de publicação em território português.
Voltando ao simples escritório…
- Boa tarde, meu caro Stuart.
- Diga-me, Dolores da Madeira, que a traz por cá?
- Certamente, já leu as especulações nas revistas cor-de-rosa… Estou a escrever um livro… Quer dizer, paguei a uma rapariga para mo escrever…
Ah! Stuart tem 26 anos, o seu sonho, de longe, não era trabalhar numa editora… Vamos dizer, deste género. Com um mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, sempre ambicionou ser contratado pela Matosinhos Editora, a prestigiada editora do Norte.
- Estou muito curioso em saber cada pormenor desse livro – mentindo de forma muito convincente.
- Se quer que lhe diga, também estou – ripostou, de forma inesperada, Dolores da Madeira.
- Como assim, não sabe o conteúdo do livro? – perguntou Stuart.
- Nem imagina de onde veio esta ideia…
E lá começou, mais uma vez, um serão desnecessário. Pouco a pouco, revelou pormenores sobre a ideia, finalizando com:
- E depois a minha filha disse-me: “isso vai vender que nem pães quentes”. Hahahahhaha… – era incrível a falta de postura de Dolores da Madeira.
Em suma, apesar de não precisar de dinheiro, a mãe de um futebolista internacionalmente conhecido decidiu que tinha de lançar um livro. Fora a filha que preparara o esquema, contactara uma amiga e conseguira encontrar alguém disposto a permanecer no anonimato que escrevesse o livro autobiográfico, em troca de uma fortuna.
Cada dia de Stuart era puro sofrimento, ele já sabia o que o esperava quando aceitou a proposta de emprego. A crise não permite estes luxos… recusar emprego. Apesar de ter um currículo excelente, a tal editora do Norte respondeu que não estavam a procurar colaboradores… Mas se um dia precisasse, ele seria o primeiro a ser contactado.
O mais irónico disto tudo é que os colegas de curso de Stuart, que também se candidataram a esse posto de trabalho, receberam exatamente a mesma resposta. Sendo que a promessa era fictícia.
Apanhou o metro para o apartamento, o humilde T2. Era solteiro, ocupava os seus tempos livres a ler… Certamente que eram livros da concorrência. Quem entrasse na casa dele, ao se deparar com as enormes estantes de livros, nunca iria suspeitar que trabalhava na Lua de Cartolina.
Onze… Doze… Uma… Duas… Três… Quatro… Cinco… Seis… Sete…
E acordou, para mais um longo dia de trabalho, ao toque do seu maravilhoso telemóvel.
Um dos privilégios da concorrência é a ausência de horários fixos, sendo que o editor poderia trabalhar em casa uma grande parte do dia. Não era o caso, esperava-o um longo dia pela frente.
- Bom dia, Amílcar – cumprimentando o porteiro.
- Tenha um bom dia, doutor.
Apanhou o metro das 7:45; eram 8:03 e já estava na editora, pelo menos tinha uma secretária pessoal.
- Bom dia, Helena, informe-me das últimas notícias.
- A imprensa portuguesa está chocadíssima, aquela atriz famosa… usou o mesmo vestido duas vezes num só mês…
Uma das perguntas que perseguia Stuart era: como é que aguentara tanto tempo com este trabalho? Era verdade que lhe pagavam bem, mas ao final de cada dia, não se sentia realizado profissionalmente. Certamente que um dia iria pedir a demissão. Um dos pontos fortes do seu currículo era o domínio da língua inglesa, possuindo um certificado de Proficiency.
Mal entrou no escritório, teve, por breves instantes, um ataque. Uma pilha enorme de livros ingleses, todos best-sellers, todos, no entanto, de conteúdo duvidoso. Ou seja, perfeito para a Lua de Cartolina.
- Stuart, tens de escolher um desses livros para ser editado em Portugal, até amanhã; a decisão é inteiramente tua – eram invulgares estes votos de confiança por parte do diretor da Lua de Cartolina.
Eram, um… quatro… treze livros!
Nove… Dez… Onze … Doze…
Passando na cafetaria da editora, tomou um breve almoço; o trabalho era muito…
Uma… Duas… Três… Quatro… Cinco…
No meio daquele lixo, havia, incrivelmente, uma obra digna de edição. Aparentemente, não era mais do que um simples relato de uma atriz famosa, mas era preciso avançar um ou dois capítulos para ler uma verdadeira obra de arte. Naquele livro, estava presente uma crítica à sociedade inculta e desinteressada, criticava diretamente as tais revistas cor-de-rosa e as editoras de lixo. Seria uma bomba se a Lua de Cartolina o publicasse.
Um… Dois…
Dois dias passaram, após muita reflexão, e consideração dos riscos em termos do seu emprego. O livro seria uma bomba para a editora, dava a conhecer ao leitor normal os esquemas das editoras de renome… criticava a sociedade materialista e curiosa, que preferia ver um reality show em vez de um documentário. Enfim, tudo o que a editora era.
Para passar o controlo editorial, Stuart retirou alguns excertos inofensivos e mostrou-os à direção da editora. Estes adoraram. Poucos dias depois, já tinham dois tradutores a trabalhar nesse livro, a sua aquisição tinha sido um sucesso, após uma luta de direitos com a Matosinhos Editora (isto intrigou muito a direção da Lua de Cartolina, pois ela nunca se interessara por este tipo de livros).
Stuart escolhera o título, “ O meu olhar “, a capa tinha uma fotografia, destacando os olhos da tal atriz que escrevera o livro; o que muitos desconheciam era que o livro não era sobre dicas de beleza e afins… Era um olhar crítico sobre a sociedade dos países ricos.
- Bom dia, o livro já foi para a tipografia. Chega às livrarias na próxima semana. – Informou Helena.
- Quero receber uma cópia o mais depressa possível – respondeu, entusiasmado, Stuart.
- Estranho Doutor, nunca me fez esse pedido. É assim tão bom o livro?
- Vamos ver o que o público acha…
Uma…
Uma semana depois, os jornais tinham recebido o livro com um dia de antecedência ao lançamento do mesmo. No dia do lançamento, o livro era alvo de destaque em todos os jornais. Títulos como “Editora sensacionalista lança dura crítica sobre a sociedade” e “ Sempre houve sobreviventes no deserto intelectual da Lua de Cartolina” remetiam para a publicação de “O meu Olhar”.
Ao mesmo tempo, numa reunião de emergência:
- Senhor Stuart, o livro que nos aconselhou a lançar não se enquadra nos parâmetros da editora, sendo que, até, vai contra eles – disse atacando Stuart.
- Sejamos sinceros, diretor. A sociedade está farta de histórias trágicas, de livros de dietas milagrosas…
- São esses tais livros que lhe pagam o ordenado todos os meses. Está despedido. Se ousar denunciar este caso aos órgãos de comunicação social, coloco-lhe um processo em cima que o vai arrasar para o resto da sua vida.
E foi assim o último dia de Stuart na editora.
- Lamento muito o seu despedimento – comentou Helena.
- Não se preocupe. Sabe, até foi melhor. Eu nem gostava do trabalho.
As semanas foram passando. Stuart enviou o seu currículo para todas as editoras existentes em Portugal, vivia à custa de poupanças. Teve de fazer um corte drástico nas despesas; deixou de ir ao cinema e ao teatro, tirou a televisão por cabo, deixou de comprar livros (não o impedindo que lesse, levando-o a frequentar bibliotecas públicas). Apesar disto tudo, o livro permanecia nos Tops nacionais, ora em primeiro lugar, ora em segundo. A editora ordenou uma segunda edição, com 20 000 exemplares.
O livro tinha sido um sucesso, mas, mesmo assim, Stuart ainda não tinha sido contactado.
Cansado de enviar o seu currículo através da internet, não obtendo resposta, começou a dirigir-se às editoras, em pessoa. Nunca o deixavam conversar com o responsável, apesar de o conhecerem.
Um dia, viu o diretor de recursos humanos da editora “Caminhos” e não hesitou em entrar, sentando-se à mesa em que ele estava.
- Você? – disse pouco impressionado.
- Só vinha entregar o currículo. – respondeu Stuart.
- Ouça jovem, ninguém quer um editor insubordinado a trabalhar na sua editora.
- A escolha revelou-se certeira, o livro já vai na 4ª Edição – ripostou Stuart.
- Não interessa, foi mera sorte. Os seus diretores nunca teriam publicado o livro; você não tem autoridade suficiente para o fazer, enganou os seus superiores de modo a conseguir a publicação.
Stuart desistiu, foi para casa.
Passaram-se semanas, e as poupanças de Stuart iam diminuindo de forma rápida. Este teria de arranjar trabalho rapidamente. É aí que lhe ligam para o telemóvel.
- Stuart, venha à editora rapidamente – disse Helena, alegremente.
Quinze minutos depois, Stuart já estava lá.
- O diretor quer conversar consigo – revelou Helena.
Aguardou pouco tempo, e entrou no gabinete.
- Tenho de confessar que, apesar de não se enquadrar nos parâmetros da editora, o livro revelou-se um sucesso, já vai na 5ª Edição. – admitiu o diretor. – Por vezes, é necessário alguém como você que arrisque e demonstre que há várias alternativas a explorar neste mercado.
- Sim… mas onde quer chegar? – perguntou Stuart de modo impaciente.
- Gostaria de voltar a trabalhar na empresa, sendo diretor de uma nova subdivisão? – perguntou o diretor. – Contaria consigo para a exploração de novas áreas, talvez da publicação de livros, digamos… mais cultos?
- Tem a certeza disso? – perguntou, incrédulo, Stuart.
- Com certeza! – afirmou o diretor. – Começa amanhã às 8h.
Stuart conseguiu orientar a editora por outros caminhos, teve o seu emprego de volta e inaugurou uma nova subdivisão.
Agora tinha uma maior liberdade de escolha, podendo contactar com um outro tipo de autores. Estabeleceu contacto com os agentes de vários autores e, finalmente, decidiu encontrar-se com um.
Duas... Três... Quatro... Cinco…
- Doutor Stuart, o Doutor João Águia chegou, mando-o entrar?
- Sim, Helena.
O visitante entrou no escritório, agora maior.
- Boa tarde. Então, fale-me do livro que está a escrever.
- Não lhe vou dar muitos pormenores, uma vez que ainda não decidimos se realmente é esta editora que vai deter os direitos de publicação do livro, mas é uma crítica a uma corrente literária iniciada por Ben Browning. – revelou João Águia.
- Estou a ver. Vou reunir com o meu diretor e, dentro de um mês, voltamos a encontrar-nos. – Disse Stuart.
E assim foi. Após aconselhar o diretor, ambos decidiram comprar os direitos. Publicaram o livro, e este, rapidamente, dominou os Tops, permanecendo assim durante vários meses. A editora começou a adotar mais esse caminho de escolhas, sendo que as histórias cor-de-rosa deixaram, pouco a pouco, de ser publicadas, ganhando assim prestígio.
Stuart sente-se, agora, realizado profissionalmente, publicando os livros de que gosta. É a prova de que basta uma ação individual para uma empresa tomar um rumo totalmente diferente.

 

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