Na extremidade do continente americano, a Patagónia é conhecida pela sua localização meridional pertencente ao mais prolongado pedaço de terra, apelidado de Chile, dividindo-se em ilhas varridas pelo vento: pedaços de afloramentos que a terra-mãe das montanhas dos Andes havia deixado para trás. No mais longínquo de um destes extremos sul, algures escondido nos temíveis encantamentos da natureza daquela região, surge o ignoto Cabo Horns, um conjunto de arribas envoltas em lenda. Junto ao rochedo, já naufragaram mais de oitocentos navios, e mais de dez mil perderam a vida. É ali que o Atlântico e o Pacífico se encontram com o oceano Glacial Antártico, não havendo nada que impedisse os ventos de se tornarem mais fortes, ou de as ondas se tornarem mais imponentes. Os marinheiros que outrora enfrentavam as águas nesta latitude, costumavam dizer que abaixo do paralelo 40 sul não há lei, e, abaixo do 50, não há deus.
No entanto, a uma milha de distância da costa, onde as impetuosas ondas já não pudessem enfurecer com tanta virilidade, erguia-se, vigoroso, um magnífico farol branco, de onde sobressaíam -ali reinavam somente os tons azuis do céu e da água, e verdes, dos montes escarpados - pujantes riscas vermelhas, sinalizando uma clara existência humana.
Vitito Galeano fora convocado para se juntar aos militares da ditadura que rapidamente começou a tomar conta do Chile. Era necessário o maior número de homens possível para manter aquele extenso país guardado das mãos do mundo que o pretendessem salvar. Pinochet prometia aos homens que manteria as suas famílias a salvo das garras tiranas que espreitavam a toda a hora do canto da rua, se se alistassem ao exército. Caso contrário, matá-los-ia a todos. Por isso, Galeano, tal como muitos outros, perdeu o seu honrado trabalho, despediu-se derradeiramente, e, no início da segunda metade da década de setenta, partiu.
Todavia, ainda nos inícios daquela soberania governamental, quando os grandes generais ainda discutiam a forma mais eficaz de vigiar tal país, onde os quatro elementos reinavam das mais variadas maneiras, precisavam de homens bravos o suficiente para liderar locais tão inóspitos quanto as aldeias dos Andes, as povoações do deserto de Atacama, ou impedir alguém de se esconder nos montes de Tamango. Galeano começava então a ponderar as possíveis vantagens de tomar conta de Naturezas assim, - partir para um local que ao mesmo tempo continuasse a pertencer a território nacional, bem como o protegesse da sangrenta ditadura de Pinochet - temendo voluntariar-se à primeira, com receio de que suspeitassem algo dele. Mas, a verdade, é que o chileno possuía um físico um tanto ameaçador, à primeira vista, especialmente porque se esquecia de arranjar tempo para aparar as suas longas barbas. Portanto, doze horas após a decisão, Vitito ia a bordo de um velho Cessna 140, usado pelos nazis há trinta anos, com destino a um dos mais desafiantes locais daquela nação: o Cabo Horns.
-Há quem diga que a famosa baleia branca de Moby Dick passava por ali – anunciava-lhe Ismael, o jovem piloto da avioneta.
-E há quem diga que abaixo do paralelo 40 sul não há lei – respondia-lhe Vitito.
-E do 50 não há Deus – continuava Ismael pensativo, quase como que antevendo o futuro daquele corajoso soldado – Pelo menos, sempre terás mais liberdade. Desejo-te boa sorte, amigo – E assim, Galeano ficou sozinho.
-Se for para morrer nas mãos dos que nos roubam, dos que nos humilham a pátria, prefiro ser engolido pela brutalidade titânica do mar do meu Chile. Sempre é mais digno, menos doloroso. - Pensou ele numa das intermináveis solitárias manhãs, enquanto atentava, alto, no horizonte à espera de alguma embarcação para sinalizar.
Numa noite de maio, em que o frio já parecia cada vez menos austero, Vitito Galeano, no cume do farol, filosofava com as constelações daquele sul remoto, enquanto a luz giratória pincelava a vasta extensão marítima. De repente, do fundo do manto breu, surge um vulto que cambaleava à calmaria do luar. Por esta altura, já o faroleiro se colocava na mira o mais atento possível, e, tornando proporções cada vez abismais, ia surgindo, daquela madeira negra, vigorosas letras, das quais ia pronunciando uma a uma até formar as palavras: EL ZODÍACO.
-Uma caravela?! - Notava-se, claramente, a fluidez com que deslizava por aquelas ondas, chegando inclusive, a preocupar Galeano, já que a caravela deveria começar a mostrar sinais de ancorar.
Vitito já não sabia o que fazer: se ficava lá em cima, esperando o que se sucederia, se descia, para ajudar no que conseguisse. Antes sequer de tomar uma resposta consciente, a potente luz incide no preciso momento em que aquele amontoado de madeira encalha por detrás de enormes e redondos rochedos, mesmo a tempo de evitar um grande desastre. Afinal, aquela artimanha fora propositada, porque, lá longe, avistavam-se duas âncoras colossais, descendo lentamente, antes de se prenderam àquelas rochas. Sendo assim, estava tudo sob controlo, não sendo necessária qualquer ajuda, e Vitito fora dormir, um pouco ainda conturbado de tal acontecimento. Nunca, em tantos meses, vira qualquer embarcação, e, de repente, a horas tardias de uma noite de primavera, surge um monstro como aquele “Zodíaco”, o qual, sabe-se lá a sorte que trazia, não se despenhou.
Na manhã seguinte, o antigo soldado despertou àquilo que julgara ser o som da música trémula do rádio, cujo ruído se estendeu pelas largas horas da manhã. Numas das suas saídas matinais de recolha de berbigões, não pudera deixar de continuar a ouvir o barulho que, agora lá em baixo, junto da costa, parecia cada vez mais afinado. Um pranto uivado? Como seria isso possível, se naquela ilha reinava a solidão?
Não aguentou a curiosidade, e, calando o palpitar frenético do seu coração, dirigiu-se cautelosamente até à proa daquela negra caravela. Antes sequer de compreender o que freneticamente se movia por detrás daquelas rochas, é rapidamente imobilizado por uma afiada espada, que encurvava exatamente à medida do seu pescoço. Sentindo a fúria a fazer escorrer finas gotas de sangue pela sua pele, grita tremulamente na sua voz mais aterrorizada pela sua inocência.
-Quem ousa pisar esta terra sagrada? - questiona implacavelmente uma voz disfarçadamente masculina por detrás de si.
-Não sei do que fala! Sou apenas o faroleiro.
-Faroleiro? Isso é impossível, homem! Esta ilha não vê existência humana alguma desde há mais de oitocentos anos.
-Por favor, não vejo minimamente onde quer chegar com esta conversa. Por favor, eu não faço mal algum. Acredite! Olhe só para mim: miserável, com estas trapos velhos no corpo, com um balde de berbigões no braço. - E Galeano, desesperado, quase que brota duas lágrimas em cada olho. - Sou Galeano. Vitito Galeano. Um mero chileno refugiado da guerra.
-A guerra... - mudando instantaneamente de personalidade, a voz traseira larga a sua vítima, mal ouve tal palavra, como que compreendo.
O vulto, finalmente, guarda a sua espada, colocando-se na mira de Vitito, enquanto o ajudava a subir.
-Irei demorar a depositar a minha confiança, mas, olhando, de facto, para si e para o seu balde, talvez começa a acreditar mais. - Quem a ouviu, e quem a vê: a voz temerosa era afinal uma jovem rapariga, que, embora cerca de dois palmos mais baixa, detinha curvas que impunham o respeito. - Sou a Capitã Caribu. Bono Caribu. Uma capitã um pouco diferente das histórias que conhece.
Aos poucos, Bono Caribu foi amenizando os ânimos, explicando cautelosamente o que se passara, visto que, por esta altura, já estava consciente da quantidade de coisas que aquele chileno vira, à medida que este se tentava concentrar no diálogo ao ignorar o repetido uivado choroso.
Ao contrário dos capitães de quem se costumava ouvir falar, que teciam as suas vidas em busca de um tesouro perdido, Bono era a guardiã de um, tendo como função mantê-lo perdido, guardá-lo enquanto segredo eternamente inimaginável. A curiosa capitã não era assim tão má quanto quis parecer, concluía Galeano.
Neste momento, a rapariga finalmente guia Vitito até um lugar onde pudesse avistar este seu estimado navio, revelando a fonte responsável por aqueles sons. Uma explosão de tons azuis esverdeados moviam-se misticamente, acompanhando a dança suave que os movimentos do corpo daquele animal fazia, invadindo a humilde alma daquele homem de uma alegria nunca antes sentida. Duas pequenas criaturas sacudiam as suas reluzentes escamas em jeito de brincadeira uma com a outra, mas logo a seguir paralisavam, atentando ao horizonte aquático, soltando uns grunhidos que se assemelhavam a lamúrias, como se estivessem à espera de algo.
-São as únicas duas crias da espécie Draco marinus. - explicava Bono. - Draco? Mas Draco é nome latim para...
-Dragão. Exatamente. A sua mãe é uma das duas únicas espécimes existentes. A sua irmã vive nas águas quentes de uma das ilhas do extremo mais ocidental europeu. Creio que chama Açores. Todavia, não há registos de que se tenha reproduzido. São espécies raríssimas, e só os fiéis guardiões podem ter acesso a tal informação. E eu, a guardiã desta família.
A Capitã Caribu tinha aportado naquele local com um intuito, afinal. Como, para sua segurança, a progenitora não poderia migrar em busca do alimento essencial para as suas crias, dependia da ajuda dos guardiões. Por esse motivo, aquele navio estava ali: vinha descarregar centenas de quilos dos mais raros búzios e conchas de todo o mundo, o alimento indispensável para a produção das escamas mágicas daqueles dragões marinhos. A ferocidade de Cabo Horns não passava de uma terra protegida pelo dragão marinho fêmea, para cuidar das suas crias, que demoravam 182 anos até poderem ser independentes. No entanto, Bono esquecera-se que o mundo evoluíra, e que a sua maldita espécie até os céus necessitava de dominar – pois só assim aquele faroleiro podia ter lá chegado, concluía -, temendo cada vez mais pela vida destas criaturas.
Assim, Vitito começava a juntar as peças daquele inaudito puzzle, escutando curiosamente as sucessivas aventuras por que a nova amiga tinha de passar para conseguir aportar naquela ilha. Capitã Caribu jamais seria capaz de assegurar a sobrevivência de um navio como El Zodíaco, nas perigosas águas da Patagónia, sem a ajuda do dragão fêmea: sob a plenitude da caravela, seguia o animal, que, magicamente, a protegia da exaltação dos mares, dando-lhe passagem, salva.
-Foi por isso que não se despenhou nas rochas. - disse o chileno.
Entretanto, quando os dois se encontravam escondidos a observar as crias, ouve-se um ruído familiar, incapaz de identificar de onde vinha.
-Parece que vem do céu. - supunha Galeano.
De repente, antes que houvesse sequer tempo de se abrigarem, passa, em alta velocidade, uma ligeira avioneta, que se tornava cada vez mais assustadora com o seu som estrondoso, parecendo largar, mais rápido ainda, uma série de balas que embatiam em todo o lado. Bono já conhecia aquela monstruosidade: era o exército de Pinochet que gostava de praticar a pontaria, ou de se certificarem do bom funcionamento daquelas máquinas assassinas, enquanto se encontravam lá no alto, apreciando fazê-lo em locais aparentemente remotos. Logo de seguida, a capitã olha para o lado, a fim de se certificar de que estava tudo bem. Porém, Vitito não fez o mesmo. Permanecia ainda imóvel, enrolado sobre si mesmo.
Bono abana-o, gritando pelo seu nome. Mas ele, como uma estátua, não respondia. Subitamente, sente algo húmido a encharcar-lhe a mão. Era sangue... A jovem grita desesperadamente, e, mal se apercebe, o humilde faroleiro cai de costas, revelando um buraco negro do lado do coração. Era certo, Vitito Galeano morrera instantaneamente.
A capitã Caribu levanta-se apavorada, soltando lágrima após lágrima, correndo em direção ao Zodíaco, à medida que olhava para trás. A ela juntam-se também os pequenos.
Bono sobe num instante até à proa, tentando o mais rápido que conseguia colocar o barco em andamento. Todavia, antes que tal fosse possível, salta das ondas uma extraordinária criatura, que movia o seu corpo elegantemente, como que dançando, exibindo as escamas de fortes tons de azul, que reluziam resplandecentes contra a luz do sol. Bono desequilibra-se com o susto, desatando a chorar à medida que pedia por ajuda ao magnífico dragão fêmea. Esta, por sua, aproximava-se ternamente, acalentando-a, enquanto se esforçava por escutar o ocorrido.
A progenitora logo se dirigiu às crias, permanecendo um tempo junto delas, à medida que, de vez em quando, atentava em redor para se certificar da segurança da pequena família. De repente, lança um olhar desconfiado à zona onde o corpo de Vitito jazia, eriçando as suas escamas que tremiam do instinto protetor perante os pequenos. Voa cautelosamente até ao local, e, de trás, ouve-se o grito da capitã:
-Não lhe faças mal! É ele o faroleiro. Tem uma boa alma. - porém, Bono não necessitou de pronunciar estas palavras; o dragão, abrandando os movimentos, aproximava o focinho às barbas ensanguentadas. A criatura erguia as orelhas, e Bono percebeu o que ela fazia: o animal conseguia sentir o antigo pulsar do coração do bom homem, e reparava que batia de uma pureza nunca antes sentida. Por momentos, o dragão permaneceu ali, como que lamentando a morte do bom homem. Mas, logo de seguida, voltou a voar até à proa do barco.
-O que estará ela a fazer? - questionava-se Bono.
Por entre o amontoado de búzios, o animal parecia escolher o maior de todos, regressando ao local com um escondido nas patas. Mal Bono se apercebera, avistou aquela concha a encher-se de uma luz tão azul quanto a do enorme bicho, o qual, enrolara o corpo esguio sobre o corpo daquele homem.
Subitamente, o dragão afasta-se, e, segundos a seguir, ainda sujo de sangue, Vitito Galeano parece levantar-se, atordoado, respirando profundamente, enquanto colocava a mão na cicatriz da ferida. A rapariga corre até ele, abraçando-o com uma enorme felicidade.
Na verdade, aquela criatura mística transformara aquele búzio num coração novo para o chileno, que agora, batia pujantemente.
-Vitito Galeano, tens um coração de búzio. - anunciava-lhe a capitã Bono Caribu.