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Um homem é feito de muitos homens. De muitos ritmos. De experiências por vezes quase antagónicas e que, ao sedimentarem, se olham, como de longe, com um sentimento de amargurada perplexidade.

O tempo correu, as distâncias acentuaram-se. E assim, ao confrontar-me com esta dura realidade não sei se aguentarei por muito mais avaliar esta saga. Um país à procura de outro país. Observe-se o que podia ser mudança é pura calamidade. Há preocupações tão absorventes, tão eminentes, o problema da sobrevivência domina-nos tanto que para o resto sobra apenas uma extremada indiferença.

Tinha apenas sete anos e foi a primeira vítima mortal de um incêndio no maior campo de refugiados da Europa. Com cerca de vinte mil pessoas, o campo de Moria está sobrelotado e os incidentes repetem-se. A União Europeia já pediu à Turquia para honrar os compromissos no que respeita aos direitos dos migrantes. A maioria deles situa-se na fronteira entre a Grécia e a Turquia. Fogem do sul do México, da Venezuela, da Líbia e muitos migrantes deixam África rumo à Europa através do Mediterrâneo. Fogem da guerra, da doença, da miséria e da  perseguição política. Crianças e menos jovens. Populações inteiras. À procura da dignidade que lhes foi roubada. Fogem dos seus países em conflito e muitas vezes encontram portas fechadas pelo medo   e pelos cálculos políticos. A Europa tem o dever de receber as pessoas que fogem da guerra e da perseguição política, 70 milhões de refugiados e populações deslocadas em todo o mundo, entre 85 a 90% não estão na Europa, na América, não estão na Austrália. Estão em países pobres ou em vias de desenvolvimento. Aí, sim, é onde há uma crise. É que no mundo que herdámos e em que perseveramos, o infortúnio tornou-se o padrão pelo qual são aferidas as outras moedas da nossa responsabilidade. Podem-se suportar situações terríveis quando há a certeza ou a esperança de que são provisórias. O que as torna vulneráveis e por vezes as liquida é saber que aquilo que lhes dói terá de ser uma dor permanente. O caminho vai-se estreitando dia a dia. Por fim, nele já não cabem desejos, vontades e sobretudo a capacidade de lhe dar voz. Um povo, uma civilização termina minando os seus membros, destruindo-se com conflitos cada vez mais devastadores, provocando o seu próprio desmoronamento. Suicidando-se, enfim. Contudo os seus membros escolheram viver, foi como se tivessem estado a preparar-se para coisa nenhuma.

Vão fazendo horas, deixar o tempo passar. O que lhes resta da vida é uma ansiosa expectativa. E inútil. Como quem se sentou num barquinho insuflável à espera de um outro mais seguro que não se sabe se passará e qual o seu destino. Não há certezas. De nada. Nos campos de refugiados nem os territórios são deles. São terras de ninguém. Não têm muros a demarcá-los, mas é como se tivessem. Os poucos lugares existentes são ocupados por crianças e velhos. Já disseram tudo uns aos outros, não têm palavras. E os que se cansaram de tanto fugirem à miséria, à doença e à guerra, preferem estar sozinhos e desfalecem. Em qualquer postura, desfalecem. O tempo tem neles outro significado, é feito de angústias e desilusão.  Estão ali à espera do fim, que as angústias se renovem. E isso traduz-se numa única palavra : dor.

 

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