Vou fazendo horas, deixar o tempo passar – metade da vida é, como diz Fernando Namora, uma perdulária expectativa. E tonta. E ansiosa. E inútil. Como quem se sentou numa gare de caminho-de-ferro à espera de um comboio que não se sabe se passará e qual o seu destino. Certeza, e relativa está apenas no local da espera. E às vezes na própria espera. Desperdiça-se, ignora-se o instante real e concreto, como areia que se nos escapa das mãos, numa espera ilusória vez seguinte.
Vou fazendo horas para a aula que se aproxima. A sala dos professores até arrepia. Está deserta. Ninguém por lá. As cadeiras estão todas vazias e eu não existo.
Contudo existe a preocupação de alguns alunos pelos testes, os que roem as unhas e os que descarregam o nervosismo batendo compassadamente com o pé na mesa vizinha, ao ritmo de uma música que os meus ouvidos escutam. Esta expressão é tudo menos desprendida e não é um disfarce. Na verdade, o estudo é o tema de conversa de todos eles, a começar naquele aluno tão vivo e perspicaz, o que mais fala nele são as mãos e o sorriso vacilando entre a ironia e a inquietude. Vai animando o companheiro do lado, que pergunta obsessivamente “Como se sabe que é complemento agente da passiva?” “Vais à gramática ver como é…” Afinal esta aplicação gramatical, tem as suas seduções… E quando a brincadeira se esgota, depressa verifico que a matéria vai longe na exigência. Deito uma olhadela ao manual que assediou a minha procura.
Todavia muitos alunos vão esquecer quase tudo, a memória não precisa que lhe indiquem o que se destina ao caixote do lixo. Em cada um destes alunos que se preparam minuciosamente ano após ano nas diferentes matérias, a sua vocação desfigura-se cedo neste mundo de competitividades. Ainda ninguém achou melhor crivo seletivo do que a indigestão de conhecimentos, quais deles terão estômago mais resistente? Não necessariamente os melhores. O que se me salienta é o tipo de relações entre eles. A limpidez, a frescura no trato. Aqui um rapaz, ali uma rapariga, tudo neles desinibido – ninguém precisa de pôr a questão, não há questão. Não há reservas, malícia, fingimento. Tudo simples. Olham-se tranquilamente, sem o falso recato ou a afogueada gula de sentimentos. Tocam-se, nada é premeditado, nada lhes deixa um resíduo de culpa ou frustração. É a mesma espontaneidade com que se sentam nas minhas turmas. Eles nem conseguem imaginar a que ponto a vida lhes pertence ou a que ponto os da minha geração a perderam ou tiveram de a inventar.
Toca a campainha. Chegou a hora. Deixo-os. O território é deles. Dirijo-me novamente à sala dos professores. Lembra um cemitério em dia de finados. Não tem muros a isolá-la e a escondê-la, mas é como se tivesse. As poucas cadeiras são ocupadas por professores envelhecidos. Impressionante. Já disseram tudo uns aos outros, repetir enfastia. E os que se cansaram de tanto trabalharem ou preferem estar sozinhos, dormitam. Em qualquer postura dormitam. O tempo tem neles outro significado, é feito de sobras. O tempo, os factos, as pessoas, as coisas. Estão ali apenas à espera do fim, que as sobras se esgotem. E isso às vezes demora.