A A A

Acredito que o que nos vale e o que fica no fim de tudo são as palavras. E, por isso, usá-las a favor da verdade é o que entendo como fundamento básico da liberdade de expressão. A frase que cito é do escritor colombiano Héctor Abad Faciolince, no livro “Somos o Esquecimento que Seremos” que é, em si mesmo, uma aula sobre o valor, o uso e o sentido mais profundo da liberdade de expressão. Pediram-me para escrever sobre ela, a liberdade de expressão, e eu, confesso, 26 anos feitos, confronto-me agora com a dificuldade de encontrar palavras para vos falar sobre um tema que trago afincadamente no coração, desde que decidi estudar jornalismo. A dificuldade de parar, de facto, para pensar no choque diário de notícias, histórias, palavras que comprometem permanentemente este princípio nobre e transformador, em Portugal e no resto do mundo. A verdade é que devemos à liberdade de expressão, ou à falta dela, muitas das pequenas e grandes revoluções dos últimos anos. Se somos, ainda, abril é porque ousámos lutar com e por ela. Estaremos dispostos a mantê-la?

Ainda hoje lia no Público a notícia sobre o acordo entre o jornalista Rafael Marques e os generais angolanos que denunciou no livro “Diamantes de Sangue: Tortura e corrupção em Angola”. Pediam pena de prisão e mais de um milhão de euros de indemnização ao homem que trouxe a descoberto os abusos sobre os direitos humanos nas zonas diamantíferas das Lundas. Chegaram a acordo, repito. Rafael Marques denunciou torturas, assassinatos e outras formas de violência num país que, desculpem-me, vive o espetáculo triste de uma alegre e democrática ditadura, não contestada, mais ou menos apoiada pelas ditas democracias ocidentais. Rafael Marques, jornalista e ativista acusado de “denúncia caluniosa”, conseguiu um acordo, mas esteve prestes a ser preso porque escreveu um livro, porque arriscou perpetuar em palavras alguma verdade. Houve acordo. O livro não será reeditado – valha-nos a Tinta da China que o tem disponível para download gratuito no site –, e Rafael Marques continuará, dizem, a lutar pelos direitos humanos em Angola, possivelmente até em colaboração com alguns dos generais que denunciou. Recordo-vos, não haverá julgamento e este homem já não será preso. Ainda bem, mas pergunto: onde ficou a liberdade de expressão?
Será que, algum dia, a liberdade de expressão feita verdade nas palavras será capaz de motivar o fim das 116 mil mortes de crianças por ano, a maioria por subnutrição? São números do “Africa Progress Report 2013” que dá conta de que Angola está entre o terço de países que mais cresceram entre 2000 e 2011 no mundo, sendo que, em 2012, ultrapassou a China. O efeito deste crescimento foi praticamente nulo na forma como a maioria da população vive. Angola é um poço de petróleo e de desigualdades e isto deve-se, não nos iludamos, à clara e inequívoca ausência de liberdade de expressão, da denúncia, da oposição e da alternativa que lhe são inerentes. Rafael Marques é um de muitos exemplos. Assusta-me mais ainda pela proximidade histórica, e não só, de Angola e Portugal. Assusta-me pensar que, eventualmente, perdemos a morada da liberdade de expressão e andamos em rua incerta. Andamos?
Em 2014, 66 jornalistas foram assassinados e 178 foram presos, de acordo com a ONG Repórteres Sem Fronteiras. Certamente, todos vocês se lembram dos jornalistas decapitados pelo Estado Islâmico. Os números traduzem a violência da realidade e confirmam os atentados consecutivos à liberdade de expressão, de imprensa, de informação. Como vos disse, Rafael Marques é só um exemplo. Começam a ser incontáveis os exemplos e também por isso me é cada vez mais difícil escrever sobre este tema. Há pano para muitas mangas. E a liberdade de expressão devia ser casaco de todos os dias não só de jornalistas, mas também de cada um de nós. Os tempos que vivemos pedem esta liberdade como quem pede pão para a boca. Pedem, sobretudo, que saibamos vivê-la no pleno direito do dever, da consciência cívica e social. Recupero a pergunta: estamos dispostos a mantê-la?
Que liberdade de expressão defendemos, quando voltamos a cara e ignoramos as mãos em prece de um sem-abrigo? Que liberdade de expressão preservamos, quando aceitamos silenciosamente a perda da dignidade humana pela desvalorização escandalosa do trabalho? O que há de liberdade de expressão nesta apatia política e neste esvaziamento de humanidade? O que é isto da liberdade de expressão num país que mal lê jornais?
Portugal vive um dos momentos mais complexos dos últimos anos no que diz respeito à liberdade de expressão e de imprensa. Sim, é verdade. Há uma crise a vários níveis instalada nos media que, parece, estamos dispostos a ignorar. E de repente, a ausência de liberdade de expressão está ao virar da esquina, longe dos casos paradigmáticos a reboque dos grandes conflitos mundiais – que mencionei –, perto das nossas casas, na banca do quiosque do bairro. Acordemos. É fácil perceber que são as condições de trabalho e os meios ao dispor dos jornalistas as principais determinantes da liberdade de imprensa que exercem sempre que escrevem uma notícia. Mas, neste país de cravos, não nos insurgimos contra a concentração da propriedade dos órgãos de comunicação. Não. Somos, antes, adeptos da conversa de café contra o serviço público de televisão. Neste país que ousou sonhar a liberdade, não nos unimos às dezenas de jornalistas despedidos em massa, em 2014, pela Controlinvest. Não. Somos, antes, apologistas de domingos refastelados num shopping de comida rápida e fome de alma.
Alguns dos últimos relatórios da organização norte-americana Freedom House revelam este declínio de liberdade. Portugal, e nós com ele, decidiu que a precariedade é um fenómeno normal. Somos crise, somos austeridade e somos exemplo de bom comportamento na Europa. Assim seja, que para rebeldias bastam-nos o BES e o Ricardo Salgado, as Listas Vip nas Finanças ou as in(ter)venções de Cavaco Silva. E, portanto, voltemos à normalidade, já que o jornalismo anda cheio dela, feita falsos recibos verdes, trabalho incalculado, salários sem cor de dinheiro. Este é um dos momentos mais difíceis dos últimos anos para a liberdade de expressão e de imprensa, sabiam disso? Não fomos, ainda, ameaçados com prisão e julgamentos como o Rafael Marques, mas vivemos amordaçados pelo conformismo, pela inação e por um jornalismo de secretária, impedido de gritar ecos de revolução, longe de ser verdade perpetuada em palavras. Compactuamos com a violência exercida sobre os velhos que morrem sozinhos em casa, com homens despidos de alento e de vontades, com folhas de jornal a pedir ser folhas de outro ofício. Onde deixamos a liberdade de expressão?
Não sei se já vos disse que fui aluna da vossa (nossa) escola. Também fui “Outra Presença”. Livre das amarras dos meus dias, hoje, como assessora de imprensa. Fui precária no jornalismo. Sou dele, ainda, nas lutas diárias, de mãos dadas com tantos amigos jornalistas de coração. E sei-me, assim, porque aprendi os primeiros significados da liberdade, quando escrevi os primeiros textos aí, nesse Jornal feito dos limites transponíveis de quem não perde a nobreza de espírito e a convicção. Se hoje acredito que havemos de ser capazes de lutar e fazer da verdade das palavras uma nova revolução é porque me ensinaram, aí, o que viria a entender depois: “os cínicos não servem para este ofício”. Disse-o o repórter polaco Ryszard Kapuscinski. São 25 anos de “Outra Presença”. São 25 anos, mesmo que o não saibam, a defender a liberdade de expressão. Não sei se saberemos mantê-la, mas sei que é assim que lutamos por ela. A liberdade e a democracia começam na notícia “Café de Ciência - Petróleo: que futuro?”, do Guilherme Moreira do 10º A; no texto “No palco para prevenir a gravidez na adolescência”, da Andreia Castro do 12º A; ou no artigo “Encontro com Mensageiro de Bragança: A força das palavras” dos alunos Pedro Venâncio, Margarida Praça, Joana Jesus e Bruno Gomes do 10ºB. A liberdade e a democracia também se fazem de sonhos e começam exatamente onde vocês estão. Se um dia a Professora Luísa Lopes vos pedir para escreverem sobre liberdade de expressão, lembrem-se de lhe dizer que a liberdade cabe no chão e nas asas que ela soube, sempre, dar a este Jornal.

 

Moodle Appliance - Powered by Solemp