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No âmbito da sexta edição do festival Plast&Cine, a companhia de Teatro de Garagem mergulha novamente no universo transmontano numa viagem sobre os ciclos temáticos das obras da artista Graça Morais. Com o título “ Graça. Suite teatral em três movimentos”, o espetáculo surge como uma homenagem à vida e obra da pintora, debruçando-se sobre as suas notas e apontamentos.

Um teatro que demonstra a presença evidente da paisagem e das gentes transmontanas nas pinturas de Graça Morais, apresenta-se como uma entrada no mundo da pintora feita através de uma companhia que tem vindo a realizar vários projetos em conjunto com o Teatro  Municipal de Bragança. Esta é uma razão mais que suficiente para o Outra Presença querer saber mais sobre a peça e seus protagonistas. Porém, não é a única: o Teatro Garagem nasceu, como este jornal, em 1989. Celebrou 25 anos, portanto. No dia da estreia da peça, o Outra Presença foi recebido pelos seus atores e encenador, os quais responderam abertamente às perguntas que lhes foram colocadas.

Outra Presença: Uma vez que a peça é em homenagem a Graça Morais, que aspetos procuram destacar da sua obra?
Carlos Pessoa: A peça tem três movimentos, tendo cada um uma abordagem particular da obra da Graça Morais. O primeiro está relacionado com a génese da pintura, ou seja, a pintura surge dos sentidos, do que ouvimos, do que vemos, daquilo que nós nem sequer conseguimos nomear. Portanto, o primeiro movimento é aquilo que estimula Graça, a pintora, a artista.
O segundo movimento é uma visão da sua obra, não apenas da perspetiva da experiência imediata dos sentidos ligados à Terra e a Trás-os-Montes, mas à pintura que sai do local particular para o mundo; aborda, portanto, a visão universalista da pintura. A pintura começa por dizer respeito à experiência de cada um, mas depois pela força do talento do trabalho torna-se um objeto universalista que diz respeito àqueles que se deixam impressionar pela obra.
O terceiro é o conhecimento da pessoa; a Graça aparece, vemos a cara dela, vemos onde ela trabalha, onde ela pinta os quadros que entram no espetáculo. Surge um jogo com a palavra graça, não é apenas um nome, mas sim um conceito fundamental na nossa vida. É aí que surge a arte e o teatro em particular deve servir para passar uma mensagem positiva, uma mensagem de esperança.

OP: Na peça é evidente o destaque da batata; porquê a batata?
Carlos Pessoa: A batata representa aquele pequeno mundo ao qual ela regressa sempre, até fala da mãe como a sua musa. Em alguns quadros, vemos uma mulher e a batata, que simbolizam as raízes. Por isso é que o cenário são só batatas, porque estas são sempre um núcleo, um pequeno mundo a que se regressa.

OP: Como se sente por criar um espetáculo sobre uma pessoa e essa mesma pessoa estar a assistir na plateia? Em que pensou quando a peça terminou e olhou para ela?
Carlos Pessoa: Estava nervoso e sentia alguma ansiedade boa, porque eu sei que fizemos todos o nosso melhor e quando nós fazemos o nosso melhor, não temos de nos sentir atormentados. Mas a expetativa era enorme, porque este espetáculo é uma dedicatória a uma pessoa e é uma dedicatória com tudo o que a palavra encerra em si.

OP: Recorda-se do primeiro contacto que teve com Graça Morais e com a sua pintura?
Carlos Pessoa: Sim, foi na Costa do Castelo, nós somos vizinhos; ela tem o atelier, nós temos o Teatro Taborda. A Graça recebeu-nos e filmámos no mês de março. Foi extraordinário, é uma pessoa com a qual sentimos que somos um bocadinho da mesma família, não é preciso falar muito, existe uma forte afinidade com aquela pessoa.

OP: No universo da Graça Morais estão presentes rituais…. Como se consegue transmitir isso?
Carlos Pessoa: Eu já venho cá há muitos anos e já me sinto parte da terra; estas coisas são-me familiares, aquilo que é dito no espetáculo é-me familiar, a epifania da natureza, as modelações das estações. Nós sentimos isso, já temos Trás-os-Montes na pele, já não somos turistas.

OP: Em setembro, apresentaram uma peça sobre o Abade de Baçal. Que semelhanças…?
Carlos Pessoa: O Abade foi muito diferente deste espetáculo. Em primeiro lugar, porque é uma pessoa que não está viva e, nessa medida, foi uma experiência muito boa, mas, ao mesmo tempo, difícil, porque também sentimos que não criou unanimidade, mexemos aqui com algumas sensibilidades. Estamos a falar de uma pessoa morta e agora estamos a falar de uma pessoa viva; apresentámos a nossa leitura sobre o Abade e houve gente que não gostou. Para mim, enquanto artista, o importante é o feedback, neste caso concreto, são dois espetáculos biográficos, dedicados a alguém. A Graça sentiu-se bem com o que viu, foi genuíno, isso deixa-me muito feliz.

OP: Como define a pintura de Graça Morais? Há alguma fase que gostaria de destacar?
CP: Eu gosto imenso das caminhadas do medo e desta última obra sobre a violência doméstica, mas se tivesse que escolher uma, escolheria esta última, porque é um tema tão forte e tocou-me tanto, que vi logo como é que a cena se ia fazer.

OP: O que foi mais difícil durante este processo criativo?
CP: Eu acho que nós temos que trabalhar intensamente na escuta. A primeira a coisa que eu fiz foi mergulhar inteiro na obra da pessoa, sentir aquilo que as pessoas sentem, tive que sonhar com a obra dela e isso é o fundamental. Fiz o mesmo com o abade, nós não podemos ficar de fora, temos que entrar. No caso dela foram as pinturas; ao entrar no ateliê, experimentei uma sensação de “pele de galinha” num espaço tao íntimo, onde ela acedeu muito gentilmente a deixar-se filmar a pintar.

OP: O Teatro da Garagem vem frequentemente a Bragança. Porquê?
CP: Para já, por causa da Helena Genésio, porque este cantinho tem um apelo. Desde os textos de Miguel Torga que eu lia no liceu, que eu tenho uma grande vontade de conhecer esta zona de Portugal, esta terra, mas, mais do que isso, como diz a Graça, mais importante do que as paisagens, são as pessoas e aqui o nosso ponto de ligação é a Helena e acabamos por vir para cá, naturalmente. Já temos uma longa história com este teatro que, para mim, é fundamental. Eu nunca agradecia nos espetáculos e só comecei a agradecer aqui, ao fim de quase 20 anos de carreira, porque aqui me senti bem, aprendi a respeitar o meu próprio trabalho aqui.

OP: Ser ator sempre foi o vosso sonho?
Maria João Vicente: Eu, por acaso, não comecei por querer ser atriz, comecei por querer ser pintora, estive 3 anos em Belas Artes. Nós tivemos um percurso de fazer teatro um bocadinho como fazemos aqui também em Bragança nos projetos com a comunidade, no teatro universitário, na escola.
Nuno Pinheiro: Eu queria ser médico, fiz enfermagem para ir para Espanha. Comecei no secundário, no cinema, foi sempre uma coisa paralela que, quando cessou, era o que mais me fazia falta; eu suportava as outras coisas enquanto fazia teatro. Quando deixei de fazer teatro, deixei de suportar o resto e foi aí que percebi que a minha vida era o teatro.
Nuno Nolasco: Eu estive em arquitetura, que era o meu sonho durante o secundário, e só depois é que ingressei no teatro. Estava lá e não tinha prazer naquilo e, portanto, reconsiderei se queria mesmo esse curso. Na altura, fiz um filme e, após duas semanas a filmar, pensei que era isso que me fazia feliz. Decidi, então, ir para o conservatório.
Ana Palma: Eu quis ser da Força Aérea, bombeira, médica, bailarina e só depois descobri que queria ser atriz para poder ser isto tudo. O meu avô era cantor no São Carlos e a minha bisavó era uma estrela de teatro de comédia que fugia de casa para ir representar. Sempre incutiu esse gosto lá em casa, fazia teatro em casa nas festas. Entretanto, eu era uma péssima aluna a Matemática e decidi escolher a área de Humanidades e, consequentemente, o teatro. Comecei com o António Fonseca. Com a nossa turma, ele fundou uma companhia de teatro que foi representar, a Cornucópia. Eu, como me portava mal, fui para um colégio semi-interno e tive de deixar o teatro. Depois de ser babysitter em Marrocos e hospedeira no Mcdonald’s, decidi ingressar na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde encontrei a grande paixão da minha vida.
Beatriz: E eu sempre quis ser bailarina…

OP: O que é a magia do palco?
Maria João Vicente: Eu acho que é isto que acabámos de dizer, viemos de outros percursos e acabámos, de repente, no teatro, porque nele consegues juntar tudo. A magia é essa ideia de tu, numa hora e meia, conseguires reinventar o mundo.
Nuno Pinheiro: Eu vejo o teatro um bocadinho como um espetro de luz, há um lado que é visível, que é aquele que as pessoas veem, há um que o precede e outro que vem a seguir. Fazer teatro, mais do que esse espetro visível, é o que vem antes e o que vem depois, porque eu não encontro uma definição muito clara do que é teatro e o que me dá mais prazer são, sem dúvida, as pessoas, o privilégio que é trabalhar com pessoas diretamente.
Maria João Vicente: Também há uma ideia muito engraçada que é aquela de te deixares moldar, não de uma forma irracional, mas confiares em alguém. Não sabemos o que as coisas vão ser e esse prazer de construir uma coisa com os outros, que não depende só de nós, é que nos dá uma razão de ser e de viver forte e enorme, ou seja, percebes mesmo essas relações de interdependência com o outro, não existe um sem o outro, como também não existe, num espetáculo, um sem o outro.
Nuno Nolasco: Eu acho que também está relacionado com o conceito de arte como algo que muda o mundo. Aqui, no teatro, o meio que tu utilizas és tu próprio e as pessoas, fazes arte através das pessoas e isso faz com que, de repente, esta arte seja tão diferente e tão gratificante em comparação com outras.
Beatriz: Ou seja, através das pessoas, com as pessoas e para as pessoas.

OP: Quais são os principais obstáculos que os atores enfrentam atualmente? O gosto pelo teatro…?
Maria João Vicente: Eu acho que sim, o gosto por alguma coisa vem aliado à convicção. Acho que é absolutamente suficiente. Embora as pessoas muitas vezes se desculpem, dizendo que não é suficiente, mas é, porque a questão é mesmo aquilo que nós valorizamos. Há pessoas que valorizam a fama e o sucesso e, para essas, o gosto pode não ser suficiente, porque, de facto, o teatro exige tempo. O próprio obstáculo somos nós mesmos, ou seja, a sociedade é feita de pessoas e nós somos o principal obstáculo, o resto ultrapassa-se. Fala-se da crise, mas isso é, dum ponto de vista, uma coisa ultrapassável. Enquanto tu acreditas, tens convicção, vais em frente e as coisas resolvem-se.
Ana Palma: O teatro é um tempo onde se vê quem fica, quem persiste, quem combate.
Nuno Pinheiro: É quase como ter um filho, há uma certa altura em que tens que tomar decisões sobre o que fazer com ele e no teatro tudo se cria.

OP: Porque é que consideram que o teatro é importante para os jovens?
Maria João Vicente: O teatro é um meio de conhecimento do mundo e de autoconhecimento, onde se aprendem gestos e atos, que têm um sentido e se relacionam também com a politica, com o exercício do nosso direito de cidadania. Portanto, ajuda no crescimento do indivíduo. A arte em geral faz isso: mostra uma maneira diferente de olhar para o mundo em geral.
Nuno Nolasco: A arte sempre mudou cabeças, sempre mudou o mundo, são as grandes mudanças na história e, portanto, a arte é sempre importante, principalmente para os jovens.
Ana Palma: Muitas vezes, perdemos a capacidade do jogo, de brincar de estar com o outro, de saber transformar uma cadeira num autocarro para dez pessoas e uma das coisas que se ganha na formação artística nas escolas é a criação de melhores indivíduos, melhores cidadãos com capacidade de comunicar, de estar com o outro.
Maria João Vicente: De estares bem com o teu corpo…
Ana Palma: Exatamente. A adolescência é uma fase muito complicada, hormonal e emocionalmente, e o que nós fazemos com o teatro nas vossas idades é fazer com que, através do teatro, vocês agarrem nas vossas urgências e naquilo que vos perturba e transformem isso num objeto artístico que possam analisar, fazer a vossa catarse, de forma a poderem seguir e estar à vontade com o vosso corpo, com as vossas ideias, com as vossas opiniões.
Beatriz: Eu acho que acaba por ser um espaço que te abre possibilidades. De repente, tens a possibilidade de comunicar com os outros e, através deles, conheceres-te melhor a ti ou experimentares novas coisas, não só a nível teórico, como a nível sensorial. Permite-te pensar de maneira diferente, saber como são as coisas, porque é muito diferente saberes que as coisas existem e passares por elas, e o teatro é um sítio onde isso é possível.
Nuno Nolasco: E isso acontece, a meu ver, quer façam parte de um grupo de teatro, quer sejam espetadores, porque ver arte é sempre um experiência sensorial e é extremamente importante para os jovens.
Maria João Vicente: Mas eu acho que passar pela experiência do fazer, mesmo que as pessoas não queiram nada ser atores, a experiência ajuda a ver melhor e a saber ver.

OP: Que conselho deixam aos jovens?
Ana Palma: Coragem, não tenham medo de ser vocês próprios, preservem a vossa singularidade.
Maria João Vicente: Vão ao teatro, façam teatro.
Nuno Pinheiro: Fujam da rotina.
Ana Palma: Saibam rir de vós próprios e continuem neste caminho que andam a criar, que é um caminho fundamental, ter um olhar crítico, pensar sobre as coisas.
Maria João Vicente: Este clube de imprensa é um exemplo muito bom daquilo que nós poderíamos dar como conselho.
OP: Três palavras que definam teatro.
Ana Palma: Paixão.
Nuno Nolasco: Sacrifício.
Maria João Vicente: Morte.

 

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