Helena Genésio, nascida em Bragança há 53 anos, foi professora no Instituto Politécnico de Bragança, onde leccionou as disciplinas de Literatura Portuguesa, Literatura para a Infância e Juventude, Literatura Dramática, Literaturas e Culturas Africanas de Expressão Portuguesa. Fundou o Teatro de Estudantes de Bragança, que presenteou os brigantinos, entre os anos de 1990 e 2008 com diversas peças.
Três farsas medievais, anónimo francês (1992); Antes de Começar, de Almada Negreiros (1995); Antes que a Noite Venha, de Eduarda Dionísio (1998); Fragmentos…Humor em Quotidiano Negro, a partir de textos de Herberto Hélder (1999); Amor Portátil, a partir de textos de Pedro Paixão (2000); Além as estrelas são a nossa casa, a partir do texto homónimo de Abel Neves (2001); Inês de Castro, a partir do texto de John Clifford (2002); Mariana - A Escrita da Voz, a partir de Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado (2003); O Armazém, texto de Vânia Cosme (2007) e Estórias Abensonhadas, a partir de textos de Mia Couto (2008) são algumas das obras. Participou, ainda, em festivais de teatro académico nacionais : 25 de Maio de 2007, IMPUT (1º festival de Teatro Universitário do Porto – Teatro Latino); 27 de Maio de 2007, FATAL (festival de teatro académico de Lisboa - Teatro da Politécnica).
Em 2004 abraçou um outro projecto, o de directora do Teatro Municipal de Bragança, que veio oferecer à capital de distrito novas opções culturais.
- Recorda-se do momento em que foi impelida para o teatro? A sua perspectiva sobre ele seria diferente se não tivesse sido encenadora?
A primeira memória que tenho da minha ligação ao teatro remete-me para a primeira infância. Teria talvez 5 anos. Representava a Bela Adormecida, no Clube de Bragança. Era o pajem e dizia apenas uma frase que ainda recordo: Senhor, Senhor rei. São quatro as fadas e não três como esperáveis!
Os meus pais alimentaram desde sempre em mim e nos meus irmãos o gosto pelo teatro. Íamos ao Porto, ao Coliseu, ver espectáculos de teatro. O meu pai é um homem ligado ao Teatro. Foi ajudante de bilheteiro no extinto Cineteatro Camões, fez teatro nos seus tempos de estudante, enquanto professor dirigiu grupos de teatro escolar, é o participante mais velho do Teatro e Comunidade – projecto artístico desenvolvido anualmente pelo Teatro da Garagem no Teatro Municipal de Bragança.
Nas festas de família havia sempre muitas crianças e todas participávamos em diversas actividades teatrais: representação de pequenas histórias infantis, teatro de sombras, teatro de fantoches, declamação de poesia, histórias. Assim cresci. Entrei para o Teatro Universitário do Porto no ano em que entrei para a FLUP. Quando regressei a Bragança para exercer a profissão de professora, fundei e dirigi o Teatro de Estudantes de Bragança, sou directora artística do Teatro Municipal de Bragança desde a sua abertura. O teatro está naturalmente em mim e eu existo nele.
- Professora, encenadora directora de um projecto de teatro. Em qual destas áreas se sente mais à vontade?
Sinto-me bem nelas todas porque todas elas foram vividas intensamente. Contudo o teatro é talvez a mais significativa; esteve sempre presente e é hoje o meu espaço de trabalho, “a minha casa”. Sinto-me uma privilegiada por trabalhar em algo que me apaixona, me envolve, me motiva.
- Que espectáculos considera imperdíveis, mas ainda não teve oportunidade de ver?
Todos os espectáculos que estão por criar e todos aqueles que não tenho tempo nem oportunidade de ver.
- Há limites para a representação teatral? O que é que não deve ser apresentado em palco?
Na antiga Grécia as representações teatrais faziam-se em honra dos deuses protectores da cidade e apresentavam-se em festivais. Havia dias dedicados à tragédia e dias dedicados à comédia. Estas representações assentes no conceito de verosimilhança exerciam influência sobre o espectador, envolvendo-o e implicando-o através da catarse. Esta é a essência do Teatro que 25 séculos depois se mantém. Infelizmente, nos tempos que correm, assistimos a uma massificação cultural, onde pululam propostas populistas que são meras réplicas do entretenimento televisivo. Numa sociedade cada vez mais massificada não se criou uma cultura de massas, antes um divertimento de massas. Os programadores e responsáveis por casas de cultura que existem para cumprir um serviço público de qualidade não podem nem devem pactuar com esta falsa ideia de cultura e devem ter a coragem de dizer não a este tipo de propostas.
- O teatro deve entreter ou inquietar?
Deve inquietar e sobretudo (co)mover, no sentido de nos comover e de nos mover com.
- O que é que distingue uma boa peça de uma má peça de teatro?
A sua força criadora e geradora de sentidos; a sua capacidade de nos surpreender; a capacidade que os criativos têm de por em cena um espectáculo que tem o poder de nos inquietar, de nos comover enquanto objecto artístico.
- O que mais a fascina no teatro?
Esta possibilidade de me questionar, de me inquietar, de me comover.
- Para si, o que é que só o teatro pode dar?
As companhias chamam-se companhias porque companhia significa partilha do pão. Eis a essência do teatro. Ao partilharmos, deixamos de ser público para ser espectadores. Se a palavra público nos remete para o universo social, exterior ao acto artístico, a palavra espectador remete-nos para uma relação mais íntima, interna ao acto artístico. A essência do teatro é, pois, esta relação de partilha entre cena e sala, relação que resulta de uma natural disponibilidade e abertura ao outro, partilhando saberes, competências e um desejo comum: o desejo de teatro, estabelecendo-se, para isso, uma espécie de contrato entre o emissor (representação) e o receptor (observador activo).
- Qual a missão de um teatro municipal?
Um teatro municipal deve ser um espaço de encontro e de diálogo com a cidade e por isso o envolvimento da comunidade deve ser uma prioridade da direcção artística. Entendemos a importância de apreender a força local numa sociedade cada vez mais global. É importante perceber numa sociedade global que os locais de onde partimos são tão importantes como os globais onde chegamos; o redescobrir as raízes e os pontos de partida levam-nos a descobrir as diversidades que depois permitem construir o global; a importância cultural de valorizar a base local da vivência das pessoas não no sentido localista de opor local a global, mas no sentido de perceber melhor o global a partir do local – cultura do glocal que significa a necessária complementaridade entre a tendência do universalismo com a tendência da especificidade. Um teatro municipal deve criar condições, definir estratégias, abrir caminhos para que a energia circule, transformando, assim, cada cidade num espaço aberto, activo, dinâmico, criativo, ligado ao mundo em mudança. Um teatro, mesmo municipal é do mundo. Projecto em construção deverá ser ao mesmo tempo local e global, cosmopolita e contemporâneo. Só estas características despoletam em nós um espírito crítico que nos inquieta, interroga, envolve e comove.
Cada teatro municipal deverá construir a sua identidade tendo em conta a realidade cultural em que se insere. Ter-se em conta esta realidade não significa tomá-la como um dado imutável, mas como hipótese de transformação. A missão de um equipamento cultural como o teatro municipal parte da realidade para a tentar transformar, não para a perpetuar. Só assim estes espaços e as cidades que os sustentam se tornarão espaços abertos, dinâmicos, activos, participativos e em diálogo constante com o mundo em mudança.
- Como programar um teatro municipal?
Programar é escolher um conjunto de propostas artísticas que são oferecidas ao público. A escolha pressupõe critérios e convicções: o programador deverá assumir a programação que faz, responsabilizando-se e acreditando na sua escolha que depende da sua concepção do mundo, dos afectos, da sua visão das coisas. Por isso, as escolhas deverão ser feitas com convicção – acreditar no que se escolhe e porque se escolhe, tentando sempre um equilíbrio entre as propostas apresentadas. Só assim poderemos formar públicos. Formar públicos é “fomentar nas pessoas contactos precoces, duradoiros e cumulativos com os diversos campos e formas de cultura, favorecendo-lhes processos de familiarização e aquisição de competências indispensáveis ao entendimento e assimilação das linguagens e das obras de cultura” . Há um saber necessário inerente ao programador mas há também inúmeros factores que intervêm na sua escolha que resulta de “um percurso em busca do saber que não é necessariamente preciso nem objectivo” . Cada programador responderá pelos factores que intervieram na sua formação e que o levam a determinadas opções. Contudo o programador não pode alhear-se da cidade onde vive nem do espaço que programa.
Programar é provocar o encontro entre pessoas, e o programador é, neste sentido, um mediador entre os que criam, as suas criações e aqueles que esperam encontrar os criadores e as suas criações. Programar exige uma atitude de mediação e de negociação entre o desejo do programador, a realidade artística e a expectativa do público. Programar é, também e por isso mesmo, criar condições para que o público se constitua numa comunidade de espera. O programador é um construtor de horizontes de expectativa de um público que se vai formando para se constituir em comunidade reunida em volta de um desejo comum: o desejo de teatro.
- Qual o seu balanço destes dez anos de teatro em Bragança?
Valeu a pena!
- O que mudou com a existência do teatro em Bragança?
Acredito que mudou a atitude, a mentalidade, a exigência, a participação, o olhar sobre as coisas, a percepção da arte, a forma de estar, pelo menos dos que vêm ao teatro. E acredito que estes, por terem mudado, mesmo que o não saibam ou sintam, ajudam a mudar os outros que não vêm, mas que estão ao lado dos que vêm.
- Que espectáculos pode destacar nestes dez anos?
Todos os que deixaram no público um brilhozinho nos olhos e um sorriso nos lábios.
- Como caracteriza o público de Bragança? Como tem evoluído o público? Temos notado uma maior afluência de jovens ao teatro. Esta perceção corresponde à realidade? A que se deve este crescimento?
O público português em geral tem um gosto demasiado conservador e, não raras vezes, apenas responde como consumidor passivo à oferta. O grande desafio é propor uma programação que permita e crie no público apetência e competência para ser não apenas consumidor, mas também, e sobretudo, espectador activo ou receptor crítico das propostas apresentadas, sem ceder a populismos. É importante a criação de uma estratégia de equilíbrio entre propostas artísticas de risco e propostas artísticas para grande público.
Enquanto serviço público que somos, temos o dever de investir desde o início na educação e formação de públicos sempre em diálogo aberto e constante com as escolas, com a sociedade civil, com as instituições, com os agentes culturais, com os criadores, com a comunidade em geral. Por tudo isto desenvolvemos, ao longo destes 10 anos, políticas culturais que estão agora a dar os seus frutos. Valorizamos a existência de um serviço educativo que nos permitiu e permite educar, formar e fidelizar públicos. Trabalhamos com as escolas e a vários níveis programando para públicos-alvo: todas as crianças do pré-escolar do 1º e do 2º ciclo do concelho de Bragança vêm ao teatro 3 vezes por ano (uma vez por período escolar); todos os alunos que frequentem classes ou escolas de ensino artístico têm entrada livre nos espectáculos da área; os alunos das escolas de música entram livremente nos espectáculos de música; os alunos dos grupos de teatro escolar entram livremente nos espectáculos de teatro; os alunos das escolas de dança entram livremente nos espectáculos de dança; os clubes de imprensa das escolas têm normalmente 4 a 6 lugares livres em todos os espectáculos. Numa parceria com o GIAPE (gabinete de imagem e apoio ao estudante do IPB), criámos incentivos para conquistar os alunos do Instituto Politécnico e temos conseguido trazê-los. Oferecemos a entrada aos alunos Erasmus do IPB. Implementamos campanhas de descontos sendo a mais visível – Combata a crise. Vá ao teatro!. Envolvemos a comunidade (dos 8 aos 80) em projectos artísticos que resultam de residências artísticas de companhias com particular destaque para o projecto teatro e comunidade que temos desenvolvido anualmente com o Teatro da Garagem.
- O que é que ainda lhe falta trazer a este teatro?
(…)
- Refere-se, por vezes, que o sucesso e longevidade de uma sala de teatro é a existência de uma companhia residente. O que pensa sobre isso?
Não partilho de todo esta ideia. Creio mesmo que a existência de uma companhia residente prejudica o ritmo da programação de um teatro, limita a utilização de espaços, contribui para uma certa acomodação das equipas técnicas e artísticas, pode ser um potencial foco gerador de conflitos não só internos como também externos, o projecto artístico subjacente deixa de ser do teatro enquanto espaço de acolhimento de todas as artes de palco com identidade própria para passar a ser o espaço de ensaios e espectáculos da companhia. A programação de teatros com companhia residente ficaria assim subordinada aos tempos e ritmos da companhia e não o contrário, que é muito mais abrangente e que se adequa aos ritmos e tempos das propostas de criação que vão surgindo. Em vez de alargamento dos horizontes de expectativa ao público, contribuiríamos para o seu fechamento. Pensemos nos poucos (pouquíssimos!) teatros que têm companhias residentes… comparemos e tiremos as nossas conclusões.
- Qual foi até agora o seu melhor momento enquanto directora deste teatro?
31 de Janeiro de 2004. O Teatro Municipal de Bragança abria oficialmente as suas portas para começar o futuro. Desenhámos um programa que queríamos perfeito, simbólico também. Convidámos a Filarmonia das Beiras, dirigida pelo Maestro António Vassalo Lourenço, um transmontano. Escolhemos os compositores: jovens compositores transmontanos, como Eurico Carrapatoso (1962) e Hugo Correia (1977). De Eurico Carrapatoso ouvimos 10 Vocalizos para Leonor e Arcos; de Hugo Correia Contos Sinfónicos a Trás-os-Montes «Mirinha e o avô pastor». Soaram os primeiros acordes da orquestra. Sentimos uma grande emoção e uma enorme alegria por termos conseguido. Assim começou o futuro sob a égide do glocal - conceito que desenvolvi no início da entrevista.
- No âmbito das suas atuais funções, que três desejos formularia se lhe fosse entregue a lâmpada de Aladino?
- A existência de políticas culturais consequentes e continuadas por parte do poder político
- O olhar a Cultura como um investimento e não como uma despesa por parte do poder político
- O investimento na educação estética e artística no sistema de ensino português
- Para terminar, um pedido, pouco inovador, mas que achamos importante: uma mensagem para os jovens de Bragança.
Sejam jovens interventivos, críticos e criativos; desenvolvam um espírito humanista. Leiam bons livros; vejam bons filmes; assistam a bons espectáculos.